Primeira infância e
proteção às crianças​

Primeira infância e proteção às crianças​

QUAL É A POLÍTICA PÚBLICA QUE MELHORA TODAS AS POLÍTICAS PÚBLICAS?

Esse é o grande desafio de qualquer gestor público preocupado com o futuro da sociedade, da humanidade. E foi nessa busca que Osmar Terra encontrou dados e informações preciosas, a partir da década de 1990, em pesquisas que mostravam que é no início da vida que são organizadas todas as competências humanas.

 

A primeira infância

É nos primeiros dias e meses de vida que as funções e a capacidade de associação do cérebro vão se organizando, pelo estímulo que a criança recebe do meio. A visão se organiza nos primeiros seis meses. A partir daí, qualquer problema de visão mais sério terá maiordificuldade de ser tratado se não for cuidado precocemente. Já a audição leva um ano para se organizar. A parte socioemocional, por sua vez, é organizada nos primeiros 18 meses. Uma criança vítima de abuso, de violência, nos primeiros 18 meses poderá ter problemas para o resto da vida.

Por tudo isso, é muito importante ter atenção aos cuidados com a criança. Quando nasce, o ser humano é como um ser extraterrestre. Ele não tem noção do que é o calor, a dor, as cores, as formas, o movimento, o som, a música. Tudo isso ele vai processando e organizando na forma de memórias dentro do cérebro, formando uma quantidade incrível de conexões entre seus neurônios. Uma criança nasce com 1.500 conexões por neurônio, podendo chegar a 18 mil já no primeiro ano de vida!

Esse aumento de conexões, desde a formação do cérebro no útero, até os primeiros anos de vida, é exponencial, criando uma quantidade gigantesca de memórias. Nós temos 100 bilhões de neurônios. Imaginando que cada um deles pode ter de 1.500 a 18 mil conexões, nosso cérebro é capaz de realizar uma quantidade quase incontável de conexões.

Com o tempo, o cérebro vai se aperfeiçoando. Aquelas memórias e conexões que foram formadas em cima de informações não relevantes, que não são repetidas e nem usadas, vão se apagando. Especialmente a partir dos 9 anos de idade, no início da puberdade. Uma criança com 3 ou 4 anos de idade pode ter o dobro das conexões que tem um adulto com 20 anos. Esse processo continua ao longo da vida, só que numa taxa muito menor.

Nós formamos memórias e aprendemos ao longo de toda a vida. Mas o período crítico e mais importante, o que praticamente define todos os alicerces da capacidade cognitiva, socioemocional, de compreensão do mundo futuro, acontece nos primeiros anos

Portanto, criar políticas públicas que apoiem as crianças pequenas e suas famílias, principalmente as mais pobres, é uma política transformadora, que vai fazer com que uma criança, mesmo sendo de origem humilde, possa chegar à escola com capacidade de aprender do mesmo jeito que uma criança que vem de uma família de classe média ou alta. Com isso, ela pode, no futuro, ter uma profissão melhor do que a dos pais, inclusive, ajudando-os a saírem da pobreza.

O processo que ocorre é extraordinário. A compreensão do que ocorre no cérebro humano é transformadora e pode mudar o mundo. “Se nós conseguirmos estabelecer, em escala, programas de apoio às famílias para orientar na estimulação precoce das crianças, nós podemos fazer a diferença para o mundo delas”.

 

Como Osmar Terra cuidou da primeira infância?

Foi a partir dessa compreensão que Terra criou, desde os tempos em que foi secretário nacional do Comunidade Solidária, o Comitê do Desenvolvimento Integral da Primeira Infância (Codipe), ainda no governo Fernando Henrique (1995-2002). Depois, ele criou o programa Primeira Infância Melhor (PIM), em 2006, no governo estadual do Rio Grande do Sul, no período do governo Germano Rigotto (2003-2007).

O programa – que foi continuado por todos os outros governadores – é uma ação transversal de promoção do desenvolvimento integral na primeira infância.Desenvolvido por meio de visitas domiciliares e comunitárias realizadas em famílias em situação de risco e vulnerabilidade social, visa ao fortalecimento de competências para educar e cuidar de suas crianças. Essa foi a primeira iniciativa em larga escala voltada para a primeira infância colocada em prática no Brasil.

Outra ação importante foi a criação do Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016), que dispõe sobre as políticas públicas para essa fase da vida. O projeto de lei do deputado federal Osmar Terra foi comandado pela Frente Parlamentar da Primeira Infância, depois de amplo diálogo democrático com a sociedade, reunindo e atualizando muito do que existia na legislação focada nos primeiros anos de vida.

Já no governo Michel Temer(2016-2018), Osmar Terra criou o programa Criança Feliz, que foi abertamente ampliado no governo Jair Bolsonaro (2019-2022). Com base em importantes descobertas da neurociência, a visão de procurar atender as crianças em suas próprias casas foi transformadora, a partir da formação de equipes de visitadores capacitados para orientar as famílias a estimular melhor os seus filhos, em visitas semanais, até para ver as condições em que as crianças vivem.Em 2021, o Criança Feliz superou a marca de 57 milhões de visitas, levando informação sobre cuidado infantil para mais de 3.028 municípios, sendo o maior programa do mundo de visitação domiciliar para a primeira infância.

Esperar que a criança seja levada a um centro de assistência social ou a um posto de saúde é perder metade da história. Porque a outra metade está em casa. As condições, abrangendo a violência doméstica, deixam sinais em casa. As condições de pobreza, de dificuldades, da própria estrutura da casa, tudo influencia no desenvolvimento da criança. Programas de visitação domiciliar levaram, inclusive, a uma premiação importante.

O Programa Criança Feliz venceu a edição 2019 do maior prêmio de inovação em educação, o WISE Awards, uma iniciativa da Fundação Catar, dos Emirados Árabes. A premiação é uma das mais concorridas e prestigiadas do mundo na área da Educação. O programa de atenção à primeira infância, que competiu com mais de 480 projetos de 130 países, foi reconhecido como uma das principais e mais inovadoras iniciativas do mundo no setor.

Ao deixar o ministério da Cidadania, em 2020, já havia algo em torno de 1,2 milhão de crianças sendo acompanhadas em casa, em todo o Brasil. Principalmente as beneficiadas pelo Bolsa Família. Essa é a base dos programas da primeira infância, ou seja, voltados para o início da vida. Terra acredita que essas ações precisam ser desenvolvidas e estimuladas para que a mudança na sociedade aconteça verdadeiramente.

A sua continuidade, infelizmente, foi prejudicada por algum tempo pela Covid-19, que impediu a visitação domiciliar. E no governo atual (2024), de acordo com Terra, o programa praticamente acabou. Foi transformado em mais um serviço dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), sem visitação domiciliar regular, nem equipe treinada para isso. “Então é um programa que, na minha visão, perdeu força”.

 

Novas leis para novos problemas

O desenvolvimento infantil saudável também levou Terra a criar a Política Nacional de Combate à Automutilação e do Suicídio (instituída pela Lei nº 13.819, de 2019), enquanto estava à frente do Ministério da Cidadania, durante o governo Michel Temer (2016-2018). A lei torna obrigatória oregistrodos casos e prevê que escolas e estabelecimentos de saúde notifiquem as autoridades.

A Lei nº 14.811, de 2024, é outro marco que tem origem em projeto de lei apresentado por Terra (PL 4.224/2021). A lei, sancionada este ano pelo presidente da República, torna hediondos crimes contra as crianças e tipifica os crimes de bullying e cyberbullying, estabelecendo medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência em ambientes educacionais.

A nova legislação prevê a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente e altera o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), aLei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).

Com toda essa experiência acumulada, o deputado Osmar Terra é categórico em afirmar: “É muito importante investir em programas de políticas públicas para o início da vida. Elas são as mais transformadoras, as que mudam a história de vida daquela criança, daquela família e da sociedade emlongo prazo”. As políticas de educação, saúde e todas as demais sãoimportantes, “mas as que têm poder de mudança, potencial de transformaro mundo, são as políticas de primeira infância”.

Terra passou a vida toda perseguindo isto: os programas que podem mudar o mundo, pois, para ele, política é para mudar o mundo, não é para benefício pessoal. “Eu não me vejo fazendo política para ganhar, para ter um benefício.Eu faço política para deixar um legado. Um legado de mudança, um legado de melhoria de qualidade de vida para as pessoas terem atendimentoquando precisarem, para elas obterem o desenvolvimento econômico que sonham, terem acesso a emprego, àrenda, enfim.”

 

Todo mundo deve saber pescar seu peixe

Porém nada acontece se as pessoas tiverem fome. Durante o governo Bolsonaro, foram cumpridos vários compromissos do presidente, entre eles o 13º do Bolsa Família. “Nós conseguimos viabilizar o pagamento”.

Mas o Bolsa Família não é uma questão apenas de renda, porque a renda, ter o que comer, é somente o começo.“A renda é um paliativo”, pois não resolve o problema. “Aquela história do pescador. Não adianta dar o peixe, tem que ensinar a pescar. O ideal é que todo mundo saiba pescar e tenha a capacidade de promover o seu sustento pormeios próprios”.

O importante para Terra é ver o desenvolvimento das pessoas, vê-las crescendo, caminhando com as próprias pernas. Foi pensando nisso que outros programas foram criados, inclusive, um para capacitação técnica de jovens.

Sobre a juventude, a questão se resume assim: se os filhos de uma família não trabalham, não estudam, não têm renda, ficam vivendo do BolsaFamília, eles não têm futuro nem para si mesmos, nem para a família. Essa realidade nada incomum exige um sistema de capacitação permanente. E esse trabalho foi iniciado com o Sistema S.

Ainda no Ministério da Cidadania,foram criados centros de esporte e lazer em vários lugares do Brasil, em parceria com o Sistema S, para que as criançasfora do horário de aula tivessem prática de esporte e lazer, que é a melhor forma de prevenir, inclusive, o consumo de drogas. Quanto maior a atividade física e a preocupação da criança e do adolescente com a atividade física, com a manutenção de uma boa forma física, menos drogas ele vai consumir, tanto lícitas quanto ilícitas.

 

Islândia, um olhar para as experiências internacionais

Experiências internacionais também foram buscadas, entre elas a da Islândia. Foram realizadas algumas reuniões com a Universidade Reykjavik, responsável peloprograma de prevenção que mais reduziu o consumo de drogas pelos jovens na Europa.

Há 20, 25 anos, quando o programa foi iniciado, 80% dos jovens na Islândia antes dos 18 anos consumiam álcool regularmente, fora outras drogas. Mais de 20 anos depois, esse percentual é de 5%. A venda de bebidas alcóolicas no país,hoje,é mais restrita. Poucos locais podem vender produtos que contenham a substância. E, para isso, devem ter permissão do governo. “É uma concessão pública e deve ser feito o cadastro das pessoas que estão consumindo.” As drogas em geralsão proibidas.As mesmas drogas que são ilícitas no Brasil são igualmente consideradas ilícitas na Islândia.

Outro ponto é a ocupação dos jovens, que é muito estimulada com atividades esportivas e artísticas. Todas as crianças têm alguma atividade fora do período escolar. Para andar nas ruas depois das 22h, os menores de 18 anos têm de estar acompanhadosde responsável.

Um dia da semana, que é combinado na escola, os pais ficam com ascriançassem a presença de celular. O objetivo é conviver mais, conversar mais com a criança, reforçar os vínculos afetivos. Tudo isso contribuiu para a redução do consumo de drogas.

Por toda essa experiência, foram realizadas reuniões com a equipe da Universidade de Reykjavik, que se propôs a trabalhar com projetos-piloto em alguns municípios brasileiros. Oprograma parou depois que Terra deixou o Ministério da Cidadania. Mas ele ainda não desistiu, pois acredita que esse é um caminho que pode ser retomado junto a municípios e estados. No entanto, ele não vêinteresse do governo atual em trabalhar a prevenção e enfrentar a questão das drogas.